quinta-feira, 26 de março de 2009

O impasse sobre a meia entrada e a prisão da atendente de guichê

Recentemente a imprensa curitibana noticiou a detenção de uma atendente de guichê de empresa especializada na venda de ingressos para eventos artísticos, desportivos e de entretenimento, quando a mesma recusou-se, sob orientação de seu empregador, a realizar a venda de ingressos com preço equivalente a um quarto do valor oficialmente cobrado.

A vendedora teria sido detida quando o cliente, um tenente da Polícia Militar do Paraná, chamou o serviço 190 , imaginando-se desrespeitado em seu direito/desejo de adquirir o ingresso de pista para um evento de música Country por um quarto do valor anunciado. O ingresso custava algo em torno de R$ 160,00, o valor da meia entrada era de cerca de R$ 80,00, praticada para idosos, estudantes e também no que se usa chamar de ingresso solidário, onde o espectador doa um quilo de alimento não perecível na entrada do espetáculo, alimento esse encaminhado para instituições de assistência ao final do evento. O ofendido tenente, entendendo que o valor efetivamente cobrado era o do ingresso solidário e imaginando que ninguém paga os valores correspondentes a ingresso integral e dada a grande quantidade de pessoas que compram a meia entrada, imaginou que teria direito à cumulação de benefícios, ainda que não houvesse a oferta de ingressos pelo preço de R$ 40,00.

O tema sobre a meia entrada é muito discutido há tempos e a orientação do Procon no Paraná também diverge de sazonalmente. Hoje em dia, o órgão declara que entende possível a cumulação de promoções, reconhecendo viável a pretensão do tenente ofendido.

A aplicabilidade da lei em confronto com o custo das produções artísticas é bastante controvertida: de um lado, em cidades como Curitiba, está o preço de uma produção de um show de nível nacional ou mesmo internacional em confronto com o preço do ingresso cobrado; de outro lado, o acesso à cultura pela população e a observância dos benefícios dados a estudantes e idosos. A “meia entrada da meia entrada” já foi objeto de alinhamentos junto ao Ministério Público do Paraná, que reconheceu e aceitou o ingresso solidário onde há a doação de um quilo de alimento. No entanto, o que mais nos preocupa é a repercussão que o incidente tem causado na opinião pública, dividida entre a análise do direito do tenente ofendido e dos estudantes e a visível desproporcionalidade da reação traduzida pela prisão da vendedora e os meios empregados para sua efetivação.

Isso tudo porque, vendo-se não atendido em sua pretensão, o consumidor, na qualidade de civil, chamou a Polícia Militar pelo serviço 190 e deu voz de prisão à vendedora (direito esse que, em teoria, lhe assiste tanto como policial quanto como civil) e pediu sua condução ao 8º Distrito Policial de Curitiba, para procedimento como prescreve a lei. O ponto nevrálgico, a nosso ver: o crime que a atendente de guichê teria cometido era uma contravenção, prevista no inciso I do artigo 2º da Lei 1.521/51, conforme se lê:

Art. 2º - São crimes desta natureza:

I - recusar individualmente em estabelecimento comercial a prestação de serviços essenciais à subsistência; sonegar mercadoria ou recusar vendê-la a quem esteja em condições de comprar a pronto pagamento;

Mais interessante, no entanto, é verificar o parágrafo único de tal artigo:

Parágrafo único. Na configuração dos crimes previstos nesta Lei, bem como na de qualquer outro de defesa da economia popular, sua guarda e seu emprego considerar-se-ão como de primeira necessidade ou necessários ao consumo do povo, os gêneros, artigos, mercadorias e qualquer outra espécie de coisas ou bens indispensáveis à subsistência do indivíduo em condições higiênicas e ao exercício normal de suas atividades. Estão compreendidos nesta definição os artigos destinados à alimentação, ao vestuário e à iluminação, os terapêuticos ou sanitários, o combustível, a habitação e os materiais de construção.

Conforme se vê, não há na lei a previsão de ingresso de show de música Country como gênero de primeira necessidade. Ainda que não concordemos com a exclusão da cultura do rol de itens básicos para um indivíduo, a disposição legal é clara e taxativa e sobre ela não recaem dúvidas.

Desse modo, questiona-se a plausibilidade (sob a ótica do bom senso) e a legalidade (sob a égide da lei) da detenção da vendedora em seu local de trabalho, quando sua base foi uma interpretação duvidosa de uma lei. Pertinente observar que com a chegada dos policiais militares, a atendente de guichê não foi convidada a acompanhá-los à delegacia: ela foi forçada a assim proceder, inclusive tendo que abandonar o quiosque trabalha sem sequer poder fechá-lo convenientemente, dadas as medidas de segurança necessárias.

Já acompanhada por advogado e detida na delegacia, a vendedora e seu empregador entabularam um acordo e uma composição de interesses com o pretenso ofendido, nos limites legais da transação possível, vendendo-lhe um ingresso pelo preço normal de R$ 80,00 (oitenta reais) e dando-lhe outro ingresso para o evento como cortesia (uma vez que o tenente pretendia a aquisição de dois ingressos e não de um só). A transação ficou consignada no Termo Circunstanciado lavrado.

Assim, a nosso ver, ainda que celebrado o acordo no que se referia ao pretenso crime contra a economia popular, e ainda que a vendedora e seu empregador não tenham representado por quaisquer ofensas contra o tenente, entendemos as circunstâncias da temerária detenção nebulosas: a existência de pretensa prisão em flagrante ou de voz de prisão (ou tecnicamente detenção) é questionável pelo determinado na Lei 9099/95 e pelo baixíssimo potencial ofensivo do pretenso crime contra a economia popular, bem como é questionável o pronto atendimento da Polícia Militar a uma ocorrência tão ínfima, quando cidadãos são assaltados e mortos diariamente na Cidade sem que a Polícia Militar tenha contingente para atendê-los.

No contexto final, o direito de um cidadão reclamar na qualidade de consumidor ofendido persiste e, na realidade, todos deveriam procurar os seus direitos para que ao menos fossem esclarecidos sobre eles. Para tanto, vale procurar órgãos especializados como Procon e o Ministério Público. No entanto, constatamos que a interpretação da lei de modo inadvertido pode causar transtornos, pelo que é função do juiz sempre realizar a interpretação dos diplomas normativos. Casos como esse, em que o particular, por desconhecimento ou exaltação, ultrapassa o bom senso nas relações pessoais não deve e não pode pautar a atuação de cidadãos civis e especialmente de Policiais Militares. Estes últimos, com dever precípuo de garantir à população a proteção contra verdadeiros crimes, os quais, esperamos, contem com efetivo atendimento das forças policiais as pretensas vítimas civis com tanta diligência e agilidade como a que foi verificada.

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